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Simão Martinez ✒ Não me falem de arte #51





AMANHÃ

OU

O Pior De Mim

...


Entretanto, tenho trinta anos. Mas a juventude parece ter-se esvaído quase toda, tendo deixado apenas como recordação a tolice que me continua a empestar,



Não me lembro de nada. Quando chego ao final do dia, é como se todas as minhas convicções enfraquecessem, e o estúpido do corretor do google está sempre a escrever “enfraqueceram”, burro do caralho, credo, deixa-me escrever.



Adiamte. Ai este já não corriges, espertalhão? Epá, assim não consigo.



Estou cansado. Escrevo a 52 amanhã.




NÃO!




Não há amanhã. Amanhã tenho 16 cartazes, 34 histórias de instagram e 27 posts para fazer, para não falar de quatro cartas de restaurante, e seis de bar.



Amanhã é a mentira que me afunda, a promessa que me trai infalivelmente. Ou que se cumpre: a promessa do meu falhanço. Às vezes acho que só vivo mesmo amanhã.



“Amanhã” vou finalmente voltar a escrever, a publicar as minhas páginas de banda desenhada, “amanhã” começar a mostrar as pinturas das quais tenho uma profunda vergonha. Mas é mesmo amanhã. Amanhã acordo com mais energia, é melhor, hoje já deu o que tinha a dar. Amanhã vou ter o tempo que hoje já não tenho.


Só que amanhã também não fiz nada disso. E depois de amanhã também não.


Não fiz nada até ao fim do mês. Não fiz nada em 2024. Porque o meu amanhã é a mentira com que fujo às minhas dívidas. Não fiz nada no ano a seguir. Porque amanhã é o meu maior inimigo. Deixo para amanhã o que não posso fazer hoje, só que amanhã vai ser igual, e não tive tempo para nada, afinal. Eu já morri, e não fiz nada.


Mas amanhã, a imagem é bonita, e simples! Só tenho de fazer isto. Porque raio se está a tornar tão difícil fazer seja o que for? Onde antes não dormiria para ter as coisas feitas, hoje durmo na paz dos anjos. Preciso de estar em condições amanhã. Vivo com tanta culpa que ela se me tornou indiferente.


Amanhã vou correr de manhã e não me esquecer de tomar os meus suplementos todos. Fazer jejum intermitente e arrumar a casa, se fizer um pouco todos os dias talvez fique arrumada. É simples, é só fazer.


Amanhã vou ligar à minha avó para saber como está, para lhe contar das minhas desventuras e perspectivas, só que como não tenho nenhumas não lhe vou ligar. Amanhã vou ligar ao meu amigo João para por a conversa em dia, mas eu sou sempre a mesma merda e as minhas histórias estão a tornar-se repetitivas.


Odeio tudo aquilo em que ponho as mãos, ultimamente. Pinto com desprezo, estou-me nas tintas. Não quero saber. Pinto, trocista das ambições que ousei ter, por causa desta merda de ter talento para tudo e um par de botas. Uma vez, quando era miúdo, num passeio de bicicleta com o meu pai e o meu irmão, estava furioso com sei lá o quê, e eles riam e riam, e eu cada vez mais irritado, fiquei tão, mas tão irritado, que comecei a pedalar com uma força estúpida, a gritar, a pedalar e a pedalar, mas sem qualquer propósito, tal que o meu destino acabou por ser uma árvore qualquer na qual embati furiosamente, coisa que, obviamente, fez com que eles explodissem de riso ainda mais - eu faria o mesmo.


Se calhar a bicicleta parou ali mas eu nunca deixei de pedalar. Se calhar tudo o que eu fiz foi por casmurrice, desafio, e vingança. 


O artista calmo e magnânimo, sempre na boa com tudo, sempre com uma resposta na ponta da língua, seguro de si e sossegado que me imaginava, não é mais do que o teatro de um puto que ainda está a espumar da boca, a pedalar a toda a força para ir de cornos contra alguma coisa. Leio textos teóricos como um barbeiro escolhe as navalhas, em cada poro da minha pele nasce um espinho que pica, e tanto reforço a minha armadura que o que está por dentro começa a ficar esponjoso e inerte. A minha atitude perante a vida tem sido “ai é? Espera aí que já vais ver!”, como um cão que ladra e ladra mas não tem dentes. Inventa-os e é convincente, esculpe-os de vidro e restos de madeira, mas a única coisa que fazem sangrar é a própria boca onde 

os encaixa.


Sabes, Simão, os bons pintores não têm, disto, os bons pintores estão bem. Para quê estes dramas? Os bons pintores têm uma framework de desculpas com uma bibliografia à prova de bala. Os bons pintores pintam todos os dias e não precisam de se esfolar a trabalhar. Os bons pintores estão tranquilos e exudam tranquilidade, de boaaaa, na maior, positividade. Os bons pintores não podem ser ranzinzas e ressabiados como tu, nem raivosos nem dizem palavrões. Os bons pintores não querem pegar fogo às galerias todas. Os bons pintores não escrevem: alguém escreve sobre eles. Esforço? Nem pensar, não se pode notar. Tudo sai de uma profunda gentileza aos bons pintores modernos. São mesmo autênticos, os bons pintores, tu só fazes teatro. Não és como eles. E eles parecem que o cheiram.


És um quase. Vais sempre ser um quase. Vais sempre estar quase.

Essa é a tua maldição. Quando eras pequeno olhaste para o fogo da lareira da casa do Montijo e pediste com todas as tuas forças para teres poderes mágicos, para seres alguém, para não estares condenado aquela vida de merda em que toda a gente gritava uns com os outros e tudo era impossivelmente aborrecido.


Os bons pintores lêem Merleau-Ponty, tu só dizes o nome dele volta e meia para parecer esperto - apesar de já teres lido uma tonelada e meia - não leste Merleau-Ponty. Soa bem, não soa? Até fazes sotaque: “Merleau-Ponty”, como um “Chatêau-Briand” de 1994. Se calhar não perceberam patavina, mas leram, enquanto tu estavas a fazer logotipos para uma loja de flores em Almancil. Porque foste estúpido e te deixaste ser explorado e esgotado e puseste a jeito para isso. Porque a pobreza te levou aos limites do desespero e os teus sonhos só cabiam no que sobrava entre a hora de jantar e a de ir para a cama. Porque todos os dias a tua fadiga é tanta e tão profunda, que só te resta deixar a vida para amanhã.


E nunca leste Merleau-Ponty.


E também nunca mais pintaste.

—Simão Martinez, 2024